Imagina-te por um momento diante da seguinte situação: caminhas por uma rua qualquer da tua cidade e te deparas com centenas de rostos, semblantes, vidas que não conheces e nem mesmo poderias supor que existissem. Em dado momento, encontras um jovem, tal qual tu és ou já foste um dia. Um jovem que não tem ainda idade para ser pai, para ser responsável, quase uma criança indefesa, frágil, mas ao mesmo tempo com um olhar que transborda um sentimento ao qual tu não consegues dar nome, mas que te atrai e de algum modo prende o teu olhar ao daquele menino.
Subitamente percebes que o jovem apresenta marcas pelo corpo, pelos braços e tórax. Percebes que ele traz marcas de profundos arranhões, feridas ainda vivas cujo sangue ainda verte e transparece nas roupas que usa, e de algum modo tu sabes, intuis, sentes que aquelas feridas são a razão dos sentimentos tão puros gestados naquele olhar, o que chega a te causar certa repulsa, pois tão violentas parecem ser as feridas que não há como entender tal sentimento naquele jovem. Percebes também que o rapaz parece expressar orgulho e gratidão. Por fim, torna-se inevitável para ti perguntar ao menino de onde vêm aquelas chagas e onde ele se ferira de modo tão violento. E surpreendentemente o menino responde com um brilho ainda mais intenso e vivo nos olhos: “FOI MEU PAI QUEM FEZ ESTAS MARCAS EM MIM!”
Bem, talvez todo o desenrolar da cena até aqui já nos tenha feito sentir e pensar mil coisas. Mais à frente em nossa reflexão tiraremos nossas conclusões. Antes disso, porém, mudemos nossa posição diante da cena. Ou melhor, assumamos a posição do rapaz cheio de arranhões e feridas. Sejamos nós o personagem misterioso que tem um não sei o quê nos olhos, ainda que os machucados sejam violentos e profundos. Talvez possa ser incômodo e estranho tomar tal posição, pois não é fácil supor-se ferido e marcado, principalmente por seu próprio Pai. Mas ainda que tudo isso pareça por demais violento, apelativo, tendencioso, talvez até ofensivo para nós, há uma verdade que clama por ser revelada. Verdade essa que, contraditória que seja, transfigura-se de ímpar beleza, ainda que incompreendida: NÓS SOMOS O RAPAZ FERIDO, CHAGADO, MARCADO POR PROFUNDOS ARRANHÕES!
Absurdo dos absurdos, estranho ou inaceitável que possa parecer, ou mesmo revoltante, tal é a nossa condição nesse momento, mesmo que não consigamos ou queiramos enxergar. Nossa alma tem e sempre terá marcas violentas e profundas, algumas ainda recentes e muito vivas, outras talvez um pouco mais cicatrizadas, mas todos temos essas chagas, e ainda que seja paradoxal, são marcas e chagas de AMOR.
Há uma particularidade belíssima na teologia cristã que nela imprime indiscutível singularidade: nossos erros, por maiores e piores que sejam, não têm a capacidade de romper os divinos laços com que Deus nos mantém presos ao Seu Coração. Se nos parece difícil crer nessa realidade, dado o escândalo que nossos pecados nos possam causar, é inegável em nosso coração o anseio que temos de novamente aproximarmo-nos da Divina Misericórdia, ainda que tantas vezes por mentira do demônio, cheguemos a temer o Amor de Deus, que acolhe e perdoa ao mesmo tempo em que corrige e ensina, e acabamos por adiar tal encontro tanto quanto podemos. Mesmo no mais profundo abismo da alma, no mais árido deserto interior, nosso coração não se deixa vencer e assim como o cervo sedento, anseia saciar-se nas fontes de água límpida. E este anseio íntimo não é outra coisa senão força do Espírito Santo a agir em nós. Mesmo o mais hediondo dos crimes não pode dissipar em nós a imagem do Deus Uno e Trino.
Entretanto, dentro desta mesma realidade espiritual existem detalhes que parecem destoantes e inadequados, e não se coadunam à ideia que temos da misericórdia e amor divinos, ideia por vezes romantizada e piegas demais. É necessário que rompamos com essa visão turva do amor de Deus e tomemos responsavelmente nas mãos e coração a certeza de que Deus nos ama até as “entranhas” de seu Ser Divino. Ama-nos de forma paradoxal, no mistério de contemplar-nos com ternura e ira, mas não uma ira contra nós, mas contra o pecado ao qual nos entregamos. Ama-nos ciosamente, deseja-nos com ganas “viscerais”, não porque queira nos escravizar, mas deseja nos fazer livres para sermos plenamente o que somos, reflexo e espelho de Seu Ser.
É constrangedor imaginar-nos como alvos de tal amor. É inquietante e desafiador buscar entender tal realidade. Mas nela reside a essência do plano salvífico de Deus para nós, e nesse constrangimento encontramos a chave de leitura do conto com iniciávamos nossa reflexão: para nos resgatar da escravidão do pecado e da morte, do lodo ao qual tão facilmente nos prendemos tantas vezes, Deus não hesita em vir ao nosso encontro e se preciso for cravar suas unhas em nossos braços, puxar-nos para fora da escuridão densa e opressiva que nos sufoca.
Quantas vezes o pecado que vivíamos estava tão arraigado em nossa alma que foi necessário que Deus nos tomasse pelas mãos, e nos puxasse mesmo nos arrastando por um chão de pedras e cacos de rocha, rasgando nossa pele, rasgando as máscaras que permitimos ao pecado colocar em nós. Quantas vezes nosso Pai do Céu necessitou também segurar-nos em seus braços mesmo quando nos debatíamos em nossas desobediências e soberbas, em nossos vícios e disfarces de santidade, e precisou tomar-nos em seu regaço com violência, para que não perdêssemos nossa vida, nossa identidade em meio às mentiras que o pecado nos levava a viver.
Voltemos ao inicio de nossa reflexão. Permitamo-nos novamente contemplar os olhos, os sentimentos, ouvir a voz do menino novamente dizendo “FOI MEU PAI QUEM FEZ ESTAS MARCAS EM MIM!”. Mas agora, de modo mais profundo, coloquemo-nos no lugar desta criança, pois nós a somos realmente, e contemplemos nossas marcas, nossas feridas, nossas chagas... Chagas que precisaram ser rasgadas pelo Senhor, os nossos braços tão marcados de arranhões profundos, que não desejavam ferir, mas resgatar nossa alma. Contemplemos com gratidão cada uma das marcas de amor que o Pai deixou em nós por conta desse amor desmesurado, sem limites humanos, sem medidas mesquinhas. Cada um dos arranhões e rasgos que o amor do Pai deixou em nossa alma não foi para outra coisa senão para nos curar das feridas infeccionadas do mundo, e saibamos que não há ferida causada pelo amor do Senhor que Ele mesmo não venha a curar e transformar numa chaga gloriosa, que servirá de cura também para outros corações.
Contemplemos com gratidão nossa vida, e a cada marca, a cada ferida, a cada arranhão, digamos corajosamente:
FOI MEU PAI QUEM FEZ ESTAS MARCAS EM MIM, PORQUE ME AMA!!!
Com carinho e orações
Roberto Amorim
Nossa Beto, que profundo este texto. Tocou no mais profundo da minha alma. É, realmente, sou esse jovem. E a imagem no final só veio completar todo o sentido. Pois eu, que venho a ferir Jesus com os pregos, sou por Ele resgatada. É a loucura da Fé. É o mistério do Amor divino.
ResponderExcluirESSE TEXTO ME FAZ LEMBRAR DUAS COISAS, UMA DELAS EU OUVI DO PREGADOR MÁRCIO MENDES NO PROGRAMA SORRINDO PRA VIDA. ELE DIZIA O SEGUINTE:"quando escolhemos seguir a Cristo, devemos estar preparados para comer a lavagem dos porcos"; A SEGUNDA, SE TRATA DE UMA PREGAÇÃO DO PADRE ROBERTO LATTIERI ONDE ELE DIZ QUE DEVEMOS SER VIOLENTOS NO AMOR DE DEUS.
ResponderExcluirVEJAMOS QUE ESAS DUAS PASSAGENS EM ALGO EM COMUM: SE AMAMOS VERDADEIRAMENTE DEUS E DESEJAMOS NO FUNDO DE NOSSA ALMA SEGUIR OS SEUS ENSINAMENTOS, DEVEMOS ESTAR PREPARADOS PARA AS FERIDAS, PARA AS CHAGAS. AMAR REQUER SOFRER, POIS SOMENTE ASSIM SABEREMOS O QUE É AMAR DE VERDADE. VAI DOER, CLARO! MAS NÃO ESQUEÇAMOS JAMAIS, QUEÉ TUDO POR AMOR. FAÇAMOS COMO SANTA TEREZINHA QUE DIZIA QUE DEVEMOS AMAR ATÉ DOER. SEJAMOS VIOLENTOS NO AMOR DE CRISTO, PORQUE ESTE, MAIS DO QUE DEVIA SE ENTREGOU E TUDO SUPORTOU, ENTÃO, PORQUE NÓS, QUE TEMOS A CRUZ TÃO LEVE NÃO SUPORTEMOS?
QUE NÓS,A PARTI DESTE TEXTO E SUA REFLEXÃO, POSSAMOS AMAR MAIS!
JESUS SACRAMENATDO, NOSSO DEUS AMADO E CERTEZA DO CÉU!