A porta estava entreaberta. Deixei-a assim sem notar, ocupado que estava, como sempre, em tantas circunstâncias acidentais do meu cotidiano. Circunstâncias que gritam e arrogam-se urgências. E eu, atarefado e disperso, entretido com aquilo que passa, mal percebi quando ele chegou. Aproximou-se com cautela, a passos leves, não por medo, mas por não querer fazer alarde. Vi quando me olhou pela fresta da porta e deu três delicadas batidas no umbral. Olhei e o vi por entre o espaço aberto, acenando para mim discretamente. Apressei-me em abrir a porta e estaquei em sua frente. Fitava-me com um ar jovial, sorrindo mais com os olhos do que com os lábios, e olhava-me profundamente em silêncio. Sabia que eu o esperava, entretanto sabia da minha indisfarçável surpresa. Sorriu como quem percebe uma situação engraçada, e isso me deu coragem para dizer-lhe um “Oi!” meio sem jeito, sem saber se essa era a melhor forma de saudá-lo. Respondeu-me com delicadeza, sem querer me assustar ou me surpreender ainda mais: - Olá! Desculpe-me por vir assim sem aviso! – disse ele, ainda parado à sombra da marquise de minha porta. Convidei-o para entrar, ao que aceitou prontamente. Não parecia cansado, ainda que levemente ansioso. E entrou em minha casa.
Eu estava realmente desajeitado. Ele, notando isso, tratou então de agir como quem sabe onde está, e de fato o sabia. Puxou uma cadeira e se sentou à mesa da varanda, colocando sobre ela as mãos calejadas e fortes, típicas de quem as utiliza para o trabalho. Distraiu-se por algum tempo observando o arranjo de flores à sua frente, e parecia gostar do que via. Olhou para mim outra vez com um sorriso e disse: - Belas flores! – Respondi que sim, eram realmente belas. E eu de fato achava que era um belo arranjo, mesmo que fossem muito simples. Mas disse-lhe que não havia sido eu quem as pusera ali. – Sim, eu sei – disse ele – mas não importa. Importa que elas aqui estejam embelezando a tua mesa e tua casa, sendo simplesmente o que são. Isto basta! Calei outra vez.
Olhei o relógio. Era por volta do meio-dia. Não estava sol, mas havia o típico calor primaveril das tardes cariocas. Notei que ele viera de longe, e talvez estivesse com fome ou sede. Mas ainda atônito, me peguei observando-o minuciosamente. Era alto, seu rosto tinha qualquer coisa de solene e simples, majestático e singelo ao mesmo tempo. Seus olhos, ao mesmo tempo distantes e misteriosos, eram penetrantes e atentos, de uma cor entre o castanho escuro e o púrpura. Não me lembrava de ter jamais visto olhos assim.
Sentado, meu hóspede esquadrinhava curiosamente toda a varanda. Paredes, teto, chão, os quatro cantos de minha varanda. Parecia tão familiarizado e à vontade com o espaço que não parecia ser sua primeira visita. Ainda assim, parecia absorto, e cada detalhe o encantava e recebia singular atenção sua. Foi quando, enfim, saí de minha letargia silenciosa e consegui perguntar-lhe se queria um copo d’água. Ao ouvir isso, sorriu outra vez. Riu, na verdade. Olhou para o vazio, como se lembrasse de algo, e logo olhou nos meus olhos novamente. Fez menção de dizer algo, mas calou-se. Eu queria ter perguntado, insistido que me dissesse o que pensara, mas não tive coragem. Enfim, aceitou a água e agradeceu. Dei-lhe o copo cheio e a garrafa, caso quisesse mais. Ele bebeu metade do copo, encheu-o novamente e terminou de beber. Enquanto enchia pela terceira vez, olhava-me como se algo quisesse me dizer, mas sem palavras. Tomou o terceiro copo de água e colocou-o sobre a mesa. Como eu disse, ele não parecia cansado, mas tinha muita sede.
Convidei-o para entrar na sala, onde era mais agradável e confortável. Entrou na frente, sempre delicadamente, sem atropelos. Manso seria a palavra. Olhando em torno, viu as paredes apinhadas de quadros religiosos, e entre tais adornos, deparou-se com um crucifixo de parede, grande. Olhou com profundo sentimento para o objeto, sem esconder uma pontada de dor. Olhou por algum tempo e fechou os olhos, com a mesma expressão de dor, profunda e viva. Respirando fundo, juntou as mãos com força, esfregando-as sofregamente uma na outra, enquanto, de olhos fechados, parecia ter um diálogo silencioso e dramático. Eu o contemplava fascinado, querendo entrar em sua mente para saber o que pensava. Pobre ilusão a minha!
De súbito, abriu os olhos outra vez, e permaneceu olhando o crucifixo ainda algum tempo. Esquadrinhou-o novamente, respirando fundo e de expressão mais serena, ainda que não escondesse o semblante de dor. Notou que o crucifixo não apresentava a chaga do coração. Seus olhos marejaram, meneou a cabeça negativamente e, por fim, disse olhando para mim: - Raramente lembram-se da chaga no peito! Raramente os homens se lembram justamente dessa chaga e, no entanto, foi a que mais doeu! – Senti-me perfurado por sua frase. Ele notou, olhou-me novamente nos olhos e não disse mais nada. Continuou a adentrar a sala silenciosa e iluminada pelos raios de sol que invadiam a janela.
Ele sentou-se em meu sofá e ajeitou-se, recostando-se ao braço do assento. Olhou as imagens de santos sobre a estante e os vários quadros na parede. Anjos, santos, os pequenos ostensórios... Viu, enfim, a imagem da Virgem das Graças. Voltaram-lhe à face a leveza, a jovialidade, o sorriso menino. Pareceu-me tão apaixonado e enternecido que também eu deixei-me enlevar pela imagem e por ele, olhando-a. Deixei escapar um misto de riso e suspiro, e ele virou-se rapidamente para mim, dizendo com graça: - É de fato a mais bela criatura dentre todas, incomparável para todo o sempre! E sabes por quê? Porque nela habitou o amor com o qual o homem não é capaz nem mesmo de sonhar! - Agora foram meus olhos que marejaram, e uma das lágrimas acabou por escorrer-me a face, à qual me apressei em enxugar. Ele sorriu e disse: - Estas tu não deves enxugar! Deixa que escorram! – A censura, doce e carinhosa, fez-me corar e lacrimejar um pouco mais, e ele pareceu gostar. Voltou os olhos para a imagem que o enternecera tanto, dando-me a chance de me recompor.
Por fim, olhou-me novamente, agora disposto a me escutar. Não que antes não o estivesse, mas agora sem distrações. Novamente perdi a voz e pedi desculpas por não ter algo a oferecer para um lanche ou qualquer coisa, pois estava sozinho naquele dia. Ele me olhou, sorrindo de modo discreto. Olhou-me profundamente nos olhos, e parecia ver minha alma por completo. Seu olhar invadiu-me, rasgou-me a alma em duas. Então, sorrindo muito mais com os olhos do que com os lábios, disse-me: - Sim, eu sei que estás sozinho! Sei que tens estado muito sozinho ultimamente!-. E eu não pude fazer outra coisa senão desviar os olhos dos seus, olhos nos quais eu via majestade e singeleza. Busquei o chão, a TV, as paredes, ainda que atraído pelo olhar do qual há pouco eu desviara. Ele insistia em fitar-me, e seu olhar sobre mim fez-me entender que eu, muitas vezes, busco a solidão cada vez que dele desvio os olhos. Ele mesmo sabia do medo que eu tinha e tenho de encará-lo. Ele entendia meu medo, pois também o sentira antes. Não disse nada, mas tocou meu ombro e isto bastou. Levantei o rosto e vi que ele também chorava como eu, ainda que em meio a isso ambos tenhamos esboçado um sorriso um para o outro. Nós normalmente nos comovemos com a dor dos que amamos. Às vezes chega a nos dar pena. Ele sentia o que eu estava sentindo. Fez-me um carinho no rosto - coisa de pai -, deu um tapa em minha perna e encorajou-me a falar, conversar com ele.
Falei de mim, dos que amo, do que temo. Falei dos meus medos, correntes que prendem meus sonhos ao chão. Ele me ouvia atentamente e vez por outra antecipava a conclusão de alguma situação. Eu me agitava, interrompia as frases, entrecortando-as com tosses, pigarros e outras fugas momentâneas. Ele as notava, mas delas não fazia caso, fazia não notar minha hesitação e fitava-me tão profundamente que era inútil fingir qualquer coisa, vestir qualquer máscara. Ele mirava o meu coração.
Falei dos meus erros, do que eu julgava ser erro nos outros e do que eu sabia que os outros condenavam em mim. Ele rabiscava palavras numa folha de papel que apanhara sobre o sofá. Não estava disperso ou desinteressado, mas mais compenetrado na essência do que eu dizia e não no que era acidental. Ora sorria, fechava os olhos, permitia-me saber que não eram necessários relatos muito detalhados. Tudo estava a ele descoberto, mesmo o que eu não dizia, fosse por medo ou hipocrisia. Mais de uma vez vi seus olhos congestionarem-se e seu semblante tornar-se irado. Entretanto, não direcionava a mim esse olhar, mas tão somente à causa dos meus erros mais profundos. Eu me envergonhava nesses momentos. Ele, porém, olhava-me e me acolhia em seu olhar, e me pedia outro copo d’água. Sentia sede mais intensa nesses momentos.
Deixei então que ele me dissesse algo. Parecia ter tanto a dizer, tanto a revelar-me, e eu estava também sedento por ouvir. Mas ele não dissera nada. Talvez tivesse notado que eu mesmo não dissera tudo. Havia uma dor calada em mim que não me permitia dizer. Uma dor que parecia viva, profunda, intensa, como um organismo parasita em mim. Ele viu minha dor, percebeu o que eu dizia sem falar.
Enfim, levantamo-nos; chamou-me para acompanhá-lo ao lado de fora de minha casa. Fui sem questionar, pois sentia que era o que devia fazer, ainda que não entendesse o porquê. Ventava docemente, uma brisa que parecia preparada para aquela tarde. Ele agora olhava para o céu como quem espera um sinal, uma voz. Não ouvi nenhuma, mas ele sim. Fechou os olhos e disse algumas palavras num tom muito baixo, as quais não compreendi e numa língua que não me era familiar. Abriu os olhos e pediu que eu me aproximasse. Congelei. Ele notou meu desassossego interior e sorriu, me disse que não tivesse medo. Ele abriu os braços, alcançou-me, protegeu-me. Não pude conter as lágrimas. Respiramos fundo juntos, ao mesmo tempo. Impossível dizer qual a impressão de respirar junto com Ele, respirar no mesmo ritmo e compasso do coração Dele.
Por fim, separamo-nos. Olhou-me mais uma vez nos olhos. Tocou-me o rosto e já sorria com saudades. Notei que se tratava de Sua despedida. Ou um ”Até breve!”. Mas não poderia ir sem me dizer algo, pois notava que agora, após tão singular encontro, era o meu coração que se encontrava sedento. E Sua voz, forte e serena, reverberou em mim de modo inconfundível:
“Não temas! Minhas promessas para ti hão de se cumprir!
E não te deixes enganar: sabes bem que Eu já as revelei a ti.
Ensurdece teus ouvidos para os sussurros insidiosos do Inimigo contra ti.
Tens a Mim, e Eu tenho a ti! Isto te basta!
Ouve minha voz e serás vencedor!
Tende coragem, pois EU ESTOU CONTIGO!”
E enquanto eu o ouvia, subitamente, já não estava mais lá. Somente o eco de Sua Voz residia agora em mim, e tudo preenchia.
Foi quando me aproximei da porta, que ainda estava entreaberta. E ali eu permaneci por um longo tempo, envolto na eternidade que acabara de viver.
Assim findou o dia, e eu ainda não sabia qual nome dar a tudo isso. Deus veio me visitar, e a muitos outros talvez. Chegou sem fazer alarde, tão singelo quanto homem, tão majestoso quanto Deus. Sentou-se em minha varanda e tomou alguns copos de água comigo. Visitou minha história e se foi, sem me deixar, contudo. Permaneceu em mim. Foi-se, mas não me abandonou. E eu agora parecia mais completo, mais eterno, mais perto daquilo que de fato sou.
E a porta permaneceu entreaberta...
Roberto Amorim
08 de Dezembro de 2011 – 01h30minh