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Amor Centrífugo


                Curioso como certas percepções do mistério divino são despertadas em nossa vida por acontecimentos que nos ferem. Creio firmemente que isso acontece devido à veracidade da velha máxima cristã que diz: “Não há Cristo sem cruz; e não haverá jamais cruz sem a presença de Cristo”. O mistério mais íntimo de Deus, Seu Divino Filho que nos foi dado a conhecer, sempre está no cerne do nosso sofrer, por mais banal ou sem importância que este possa parecer. Dito de outro modo: se tivermos a coragem de romper os medos interiores e esquadrinharmos os escuros corredores dos nossos sofrimentos, lá encontraremos Cristo, que nos sustenta e dá sentido à nossa dor, assim como na cruz a morte mais atroz foi como uma semente que se rompeu, se estraçalhou e gerou ressurreição. 

                Bem, comento tudo isso inicialmente para refletir um pouco sobre minha forma de amar. Abro o coração e corajosamente disposto a encontrar sentido cristão no que vivo, decido observar meus sofrimentos à luz de tudo aquilo que creio e busco viver a respeito do amor de Deus. E de modo ao mesmo tempo violento e suave, Deus me inspira e mostra a realidade centrifuga de Seu Amor, aquele com o qual devemos amar. Pode soar estranho ou mesmo revolucionário associar o amor de Deus a esta palavra, mas mesmo nessa estranheza o sentido divino desse amor desvela-se como único modelo seguro a ser seguido.

                Não conheço bem as realidades da física, mas creio estar certo ao supor que uma máquina de força centrifuga lança para fora os corpos que se aproximam de seu centro. Entretanto, cessada a força, num momento de repouso, aquele corpo mansamente, naturalmente busca o centro do aparelho e ali aguarda, descansa, repousa... 

                Ocorre algo semelhante conosco. Percebo que o amor de Deus  por mim e consequentemente o amor com que Ele deseja  que eu ame é este amor centrifugo, que me atrai ao mais intimo de Seu Divino Coração nos momentos de repouso, mas “violentamente” lança-me para fora, “me expulsa” de mim mesmo em direção à realidade em que vivo. De modo muito interessante, percebo que a proximidade com o centro é o que proporciona a força para lançar-me. Em outras palavras, eu posso me questionar: minha proximidade de Deus tem me dado forças para lançar-me? Creio que quanto mais percebo que há em mim destemor e ousadia para lançar-me, tanto mais clara estará a ideia de que estou ou não próximo a Deus. 

                Percebo também que quanto mais leves e despidos nos aproximamos do sentido último do nosso sofrer, mais docilmente o amor de Deus nos impulsiona e nos lança. Se, ao contrário, me aproximo de Deus armado de diversos sentimentos de autopiedade, mesquinhez, ou qualquer outro sentimento que nos pese, não serei aprimorado por esse amor e não serei lançado por sua força, mas por meu próprio peso. E o meu peso ferirá a outros, pois dessa forma me lanço por força de sentimentos dos quais eu mesmo não quis me deixar curar por Deus. Imagino como se colocássemos pequenas pedras de mármore dentro de um liquidificador. Alem de as finas lâminas não lapidarem as pedras de modo certo, os ruídos e colisões denotam a violência com que o peso do mármore o arremessa contra o que há ao seu redor. E a toda essa reflexão bastaria  somente adicionar um belíssimo detalhe: o amor de Deus lança-nos aos outros, para os outros; os meus medos, pesos, limites não curados lançam-me contra os outros. 

                Paro por um instante minha reflexão e me pergunto se tenho me despido para ser lançado de modo mais leve. Meu coração me pergunta se já aceitei a maravilhosa verdade de que Deus de nada me acusa, e assim possa dele me acercar para amar mais e melhor.
                Certa vez, li uma frase cujo autor não me lembro, mas que imprimiu em mim, em meu coração uma germinal vontade de deixar-me mais leve em Deus: “O Evangelho converte por atração, não por adaptação”. Encontro nesta frase a certeza de que o amor de Deus me faz livre sempre e desse modo deve ser o meu amor para com o outro. Amor livre esse que ao aproximar-se do outro, o atrai, mas dele não se apodera. Conquista mas não seqüestra, e mira corretamente o bem para o outro, dispondo-se a pagar o preço. 

                Percebo no Amor Divino que desse modo nos atrai não quer outra coisa senão a plena liberdade interior para nós. Pergunto-me onde tenho mirado o meu amor por Deus e pelo irmão. Percebo que a chave e o segredo estão na conquista diária da retidão e humildade. Quando amo de modo equívoco, miro em mim mesmo o amor e erro o alvo. Curiosamente, a etimologia da palavra pecado, seu sentido original equivale justamente a “errar o alvo”. E cada vez que miro de forma errada o meu amor por Deus e pelo outro, eu escravizo a mim mesmo e ao irmão. Nego a Deus a possibilidade de fazer-me livre. Cada vez que amo no desejo de seqüestrar, obrigo também o outro a errar o alvo – pecar – do seu amor. Interponho-me entre Deus e o outro, colocando-me numa posição que cabe unicamente a Deus, e me torno um ídolo. Mas, por outro lado, amando na liberdade para a qual fui criado, e na liberdade de permitir que Deus ame em mim, eu me aproximo e conquisto, e levo as pessoas à fonte que me possibilita amar da forma correta. Torno-me uma seta, uma flecha, um ícone; uma espécie de janela aberta que mostra o céu, o que está além. Torno-me uma imagem translúcida por onde se pode enxergar a pureza que há em  Deus.

                E novamente eu me pergunto: tenho amado desse modo? Temo perceber que a tensão gerada por esse questionamento seja fruto dos meus erros de alvo. E nesse sentido peço a Deus que calibre outra vez a mira do meu coração. 

                Curioso como certos espinhos, ao ferir nosso coração,  irrigam nossa alma. Creio hoje, mais que ontem, que há feridas necessárias, que nos aproximam de Deus  e nos fazem repousar e experimentar a força centrifuga de Seu Amor.  Hoje, mais do que nunca, peço a Ele que nos dê esse amor. Atrai-nos, Senhor... Consola-nos, lança-nos...

Queremos correr ao seu encontro
Ao Seu encontro
Arrasta-nos, Senhor
Inflama-nos de amor...
(Arrasta-nos – Comunidade Shalom)


Com carinho e orações,
Roberto Amorim  
27/09/2010 – 18:45h

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